sexta-feira, 15 de junho de 2012

Sobre Fome


   Eu queria aquele cara, eu queria muito, de qualquer jeito, em quaisquer circunstâncias.  Tinha alguma coisa nele que me fazia querer ele, muito. Ele me deixava entumecida, enrijecida, só de saber da existência dele no mundo, só de saber que ele respirava, que eu o conhecia.  Eu lia tudo que ele escrevia, em todos os veículos de comunicação, eu lia, via, ouvia, engolia, devorava, eu comia ele, eu queria transar ele.  Eu via aquele vídeo dele falando sobre os Smiths com aquela cara de sacana, e parava o vídeo exatamente quando ele levantava a sobrancelha direita, e depois, quando ele fazia aquela cara de desdém. Eu queria dar pra ele naquela mesa de vidro da sala dele.
   O fato é que a gente raramente se via, mas nos falávamos sempre ao telefone, internet, carta. Eu via ele na tv e também o ouvia na rádio. Ele falando de mulheres e eu só querendo saber o que ele diria ao me ver tão entregue, e falava de Bowie e Tarantino e fazia com que eu o quisesse do meu lado, todos os instantes.  Vamos lá, você deve me entender, eu sei que isso não é paixão, muito menos amor. Eu só queria passar a noite toda dando pra ele enquanto escutava Zeca Baleiro cantar, o suor dele no meu, o gosto na minha boca e o gozo por que não? E se pintar amor? Eu engulo, também o amor. Na mesa da sala, na cama, na pia da cozinha e em cima das famosas capas da coleção de vinis dele. A mão direito em Roberto Carlos, a esquerda bem em cima dos Beatles,  em baixo da minha coxa Cazuza.
    E quando me liga,  fica falando que Clarice era amarga, Caio era insaciável e Bjork tinha uma cara de menina arteira, adolescente sofrida de amor e eu querendo ele perto, respiração no ouvido, mistura de sentidos. Querendo jogar longe aquele ar de músico intelectual, junto com aqueles óculos de nerd formado em geografia, cantando com seu inglês estudado no meu ouvido, e eu, querendo dar pra ele. Eu, que nem era chegada a essas coisas, mas como idealizava ele, como sentia ele dentro de mim, como eu tinha necessidade carnal de violentar aquele santuário que habitava aquela alma, cravar as minhas unhas grená nas costas dele, meus dentes na sua orelha, lábios e mamilos. E implorar no ouvido dele quantas vezes ele quisesse pra que ele ficasse dentro de mim.
   Ok, você deve saber o que é isso, sentir necessidade de alguém, é como saudade nas definições de  Clarice*, ele estava sempre dentro de mim, mas eu queria materializá-lo e fazer com que não só a alma, mas nossos corpos fossem um só. E sim, eu daria pra ela assim que o visse, sem cerimônias, sem rituais, nossa primeira transa.
    Mas a verdade é que as nossas almas já vinham se transando há tempos. A minha comendo cada vez mais a dele. 


*Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida - Clarice Lispector